segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Latim uma língua eterna

Latim Básico

Prof. Dr. Miguel Barbosa do Rosário (miguel.rosario@latim-basico.pro.br)

Apresentação

A língua em que um Horácio, um Vergílio, um Catulo, um Cícero escreveram nunca deixará de despertar o interesse, a curiosidade e a paixão daqueles que desejam passar pela experiência estética de os ler no original.

Não somente sob o aspecto literário, no entanto, o latim desperta interesse, mas também sob o aspecto lingüístico, como muito bem ressalta R. Lakoff in Abstract Syntax and Latin complementation:

“The Latin language has been studied probably for a longer uninterrupted period of time, and by more people, than has any other language. Because of its dominance of the intellectual and religious life of Europe over a long period even after it had ceased to be spoken, its grammar has aroused more curiosity than that of any other language.” (p. 1)

“A large and continuing supply of data is vital both for synchronic study of a language at one point in time – as, for example, a study of Ciceronian Latin – and for diachronic work attempting to account for the changes observed in a language over a period of time – such as a study of the differences between Ciceronian Latin and modern Spanish.” (p. 2)

“For these reasons, a study of Latin syntax can yeld valuable information in a number of areas that we could not hope to touch in a study of a modern language, or, for that matter, of any other ancient language.” (p. 2)

(“A língua latina tem sido, provavelmente, estudada por um ininterrupto período de tempo mais longo e por um maior número de pessoas, que qualquer outra língua. Por causa de seu prestígio na vida intelectual e religiosa da Europa durante um longo período, mesmo depois que ela deixou de ser falada, sua gramática tem despertado mais curiosidade do que a de qualquer outra língua.”

“Um grande e ininterrupto fornecimento de dados é vital tanto para um estudo sincrônico de uma língua em um certo ponto no tempo -- por exemplo, um estudo do latim ciceroniano -- como para um trabalho diacrônico, que busque enumerar as mudanças observadas numa língua através de um período de tempo -- como o estudo das diferenças entre o latim ciceroniano e o espanhol atual.”

“Por essas razões, um estudo da sintaxe latina pode render valiosas informações em um número de áreas que não logramos alcançar em um estudo de uma língua moderna ou de qualquer outra língua antiga, sobre esse assunto.”)

É de meu entendimento que o material contido nas lições ora apresentadas fornece ao professor de latim um roteiro seguro, capaz de o ajudar a transmitir a seus alunos as noções básicas da língua latina. A partir da sintaxe chega-se à morfologia. De fato, o desvendamento das estruturas morfológicas mostra que a palavra latina traz em si a indicação de sua função sintática. Na frase, por exemplo, femina uirum uidet‘a mulher vê o homem’, femina traz em si a indicação de que é o sujeito da frase. Essa indicação morfossintática permite que a frase se escreva de outras formas, sem que seu sentido seja alterado: uirum femina uidet, uirum uidet femina, femina uidet uirum, uidet uirum femina, uidet femina uirum. Já o português e as demais línguas românicas perderam essa indicação morfossintática, razão por que a ordem das palavras passou a ser significativa, havendo, portanto, mudança de sentido, se se disser, por exemplo, o homem vê a mulher. Essa simples comparação do latim com o português mostra quão diferente é a manifestação sintática de uma e outra língua. Seu aprendizado, por isso mesmo, se torna fascinante e permite àquele que a estuda o distanciamento necessário para melhor examinar a própria língua nativa.

Além do mais, todos aqueles que desejam apoderar-se do sentido primeiro das palavras não podem deixar de buscar no latim o verivérbio, como a personagem do conto de Guimarães Rosa, Damázio, que fica intrigado com o termo famigerado e viaja longes terras para procurar descobrir o sentido dessa palavra. Vale mesmo a pena transcrever trechos do famoso conto do notável escritor:

— “Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada…”

— “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado … faz-me-gerado… falmisgeraldo … familhas-gerado…?”

— Famigerado?

— “Sim senhor…”

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

— Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”…

— “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”

— Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito…

— “Ah, bem!” — soltou, exultante.

Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.

(ROSA, J. Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 37a. impressão. 1988. p. 13–17.)

G. Rosa se serve do termo famigerado, que dá título ao conto, para construir uma rara peça de humor, graça, erudição. Ele joga com o duplo sentido da palavra, um ligado à sua origem etimológica, do latim fama + gerado, e o outro, à etimologia popular, faminto, sentido que ele esconde de Damázio.

Etimologia é uma palavra de origem grega (etumo ‘verdadeiro’ + logia ‘tratado’) que Cícero traduziu para o latim por ueriloquium e que significa ‘maneira de falar verdadeiro’, i.e., ‘sentido verdadeiro de uma palavra’, o verivérbio de G.Rosa. E essa busca, só consegue fazê-la quem conhece, pelo menos, o latim. Essa espécie de arqueologia lingüística permanece fascinante para o espírito humano.

Feitas essas considerações iniciais, julgo importante tecer alguns comentários sobre a estrutura do livro e sua organização.

Busquei, nesta edição, fornecer ao professor de latim uma seleção de frases de autores significativos do período clássico. Se, por vezes, o autor não se enquadra nesse período, a frase selecionada, no entanto, pertence à estrutura clássica, que é a modalidade examinada no livro.

Algumas recomendações para melhor aproveitar-se o material contido no livro: cumpre, inicialmente, ler em voz alta cada frase, a fim de que o aluno passe a ter o domínio da pronúncia do latim clássico (81 a.C. a 17 d.C.). Essa questão da pronúncia vem discutida no Apêndice do livro. Após a leitura de cada frase, examina-se o seu conteúdo, seu significado, e, se possível, fala-se sobre o autor da frase. A seguir, examina-se a estrutura morfossintática da frase traduzida para o português e, só então, passa-se ao exame da frase latina, dando-lhe as informações gramaticais necessárias para o seu entendimento. Note-se que no corpo de cada lição essas informações estão apresentadas, sem, no entanto, dispensarem complementações, a critério do professor. Ao final de algumas lições estão inseridos textos de autores latinos com sua respectiva tradução. Eles devem ser lidos e comentados.

Com a publicação deste trabalho, quero oferecer aos alunos a oportunidade de terem acesso a uma língua que deixou de ser falada há séculos, mas que permanece viva através de sua vasta literatura e ainda encanta a todos aqueles que a ela têm acesso. Examine-se, a propósito, o que nos diz o filósofo Nietzsche:

“Até hoje não senti com nenhum poeta aquele mesmo êxtase artístico que desde a primeira leitura me proporcionou a ode horaciana. O que aqui se alcançou é algo que, em certos idiomas, nem sequer se pode desejar. Esse mosaico de palavras, onde cada uma delas, como sonoridade, como posição, como conceito, derrama a sua força à direita e à esquerda e sobre o conjunto, esse minimum em extensão e em número de sinais, esse maximum, conseguido desse modo, em energia dos signos – tudo isso é bem romano e, se se me quiser crer, notável por excelência.”

(Nietzsche, F. Crepúsculo dos Deuses, apud Francisco Achcar. Lírica e Lugar-comum. São Paulo: Edusp. 1994.)

Estou plenamente convencido de que quem tem o domínio da gramática do português padrão terá pouca dificuldade em aprender o latim, e quem se aventurar a aprender essa língua tão sonora e tão bela disporá, tenho certeza, de um instrumental rico e precioso, que o acompanhará por toda sua vida.

Dados sobre o autor

Professor Titular de Latim na Escola de Letras da UniverCidade, a partir de 1997.

Professor de Latim no Curso de Letras da Universidade Estácio de Sá.

Professor concursado de Língua e Literatura Latina da Faculdade de Letras da UFRJ, de 1968 a 1996, quando, então, se aposentou como Professor Adjunto.

Professor Titular de Língua e Literatura Latina e de Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Notre Dame, de 1974 a 1981.

Professor de Língua Latina da Universidade Veiga de Almeida, de 1984 a 1988.

Freqüentou, de 1968 a 1970, os cursos de lingüística oferecidos no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, com vista à obtenção do título de Mestre.

Defendeu, aos dez de janeiro de 1989, sua Tese de Doutoramento A Gramática Latina de Francisco Sánchez de las Brozas, tendo obtido de todos os membros da Banca Examinadora o conceito A, com a recomendação de publicação de sua tese. Orientador: Professor Doutor Olmar Guterres da Silveira.

Trabalhou como etimólogo, de 1992 a 1994, no Dicionário Aurélio.

Trabalhou como lexicógrafo no Instituto Antônio Houaiss, nos meses de setembro e outubro de 1997, na seção de etimologia.

Fez parte da equipe que, no ano de 1999, reelaborou o Dicionário da Academia Brasileira de Letras, tendo feito 8.700 verbetes. Coordenação Geral: Professor Doutor Antônio José Chediak.