ouvir estas palavras familiares! Na verdade, tinha tal esperança no coração e contava o tempo gozando o futuro; minha solicitude não foi enganada. Que de terras, que de imensos mares atravessaste antes de chegar até mim! por quão grandes perigos foste perseguido, ó filho! Quanto temi que os remos da Líbia te fossem nocivos!” Enéías, porém, retruca-lhe: “É a tua imagem, meu pai, é a tua triste imagem, que, oferecendo-se a mim freqüentemente, me força a transpor o limiar destes lugares. Minha frota está ancorada no mar Tirreno. Permite, ó pai, permite que aperte tua mão direita e não te afastes de meu abraço”. Assim falando, grossas lágrimas corriam-lhe pelas faces; três vezes tentou lançar os braços em volta do pescoço do pai, três vezes a imagem escapou-se das suas mãos, semelhante aos ventos ligeiros e semelhante a um sonho alado.
Entretanto Enéias vê num vale um bosque separado e arvoredos cujos ramos farfalhavam, e o rio Letes que banha aquela aprazível região. Em volta desse rio agitavam-se nações e povos incontáveis; bem como quando as abelhas, num sereno dia de verão, pousam nas flores e se espalham em volta dos cândidos lírios, todo o campo murmura com o zumbido dos insetos. Enéias pasma a essa súbita vista, e se informa da causa daquele mistério: que rio é aquele que se estende ao longe? quem são os homens que cobrem, com sua longa fila, as praias? Então o pai Anquises lhe diz: “As almas, às quais são devidos pelo destino outros corpos, bebem na onda do rio Letes as águas quietas e os longos olvidos. Há muito tempo, na verdade, desejo te referir e pôr sob teus olhos e te enumerar toda esta descendência dos meus, para que rejubiles comigo de antemão por haver encontrado a Itália”. “Ó meu pai, é pois crível que as almas subam daqui ao ar, em direção do céu, e voltem, novamente, ao peso dos corpos? Que desejo insensato é este de luz que se apodera desses infelizes?” “Na verdade, eu te direi, meu filho, não te deixarei duvidoso”, retorna Anquises, e lhe desvenda, ordenadamente, cada segredo. “No princípio um sopro vivifica interiormente o céu, a terra, as líquidas planícies, o globo luminoso da lua e o astro de Titá, e o espírito, espalhado pelos membros do mundo, move a massa inteira e se mistura com este grande corpo. Daí provém a raça dos homens, a dos animais e a vida das aves, e os monstros que o mar encerra sob sua superfície marmórea. Há nessas sementes de vida vigor ígneo e origem celeste, enquanto corpos nocivos não os contrariem e partes corporais e membros perecíveis não lhes tolham as funções. Daí nascem os temores e os desejos, as dores e as alegrias, e não distinguem mais as brisas do céu, fechados que estão nas suas trevas e na sua cega prisão. Além disso, logo que o dia supremo da vida deixou o corpo, os infelizes não estão de todo desembaraçados do mal e de todas as misérias corporais, e o mal que longo tempo se acumulou no fundo deles mesmos, necessariamente cresce, de maneira extraordinária. Por isso são castigadas com penas e sofrem os castigos dos antigos males: umas, suspensas ao ar, são abertas ao sopro dos ventos ligeiros; outras lavam no fundo de um golfo o crime com o qual foram manchadas, ou são depuradas pelo fogo. Cada um de nós sofre os seus Manes; a seguir somos enviados para o amplo Elísio, cujas ridentes campinas em número pequeno nós ocupamos. Finalmente, depois que um longo dia, volvido o círculo dos tempos, apagou a mancha profunda e purificou a origem celeste, faísca do sopro primitivo; quando todas essas almas viram rodar a roda durante mil anos, o deus os chama em longas filas para as bordas do rio Letes, a fim de que esqueçam o passado e tornem a ver as abóbadas do alto, e comecem a querer voltar para corpos.”