quarta-feira, 2 de maio de 2012

1. Eneida de Virgílio

ENEIDA

Virgílio

Tradução: Tassilo Orpheu Spalding

Eles iam, obscuros, através da noite solitária, através da sombra e através das moradas vazias e do vão reino de Dite: tal é o caminho nos bosques, quando a lua é incerta, sob uma luz maligna, quando Júpiter mergulhou o céu na sombra e a sombria noite arre­batou às coisas sua cor.

No próprio vestíbulo, à entrada das gargantas do Orco, o Luto e os Remorsos vingadores puseram seus leitos; lá habitam as pálidas Doenças, e a triste Velhice, e o Temor, e a Fome, má con­selheira, e a espantosa Pobreza, formas terríveis de se ver, e a Morte, e o Sofrimento; depois, o Sono, irmão da Morte, e as Alegrias perver­sas do espírito, e, no vestíbulo fronteiro, a Guerra mortífera, e os férreos tálamos das Eumênides, e a Discórdia insensata, com sua cabeleira de víboras atada com fitas sangrentas.

No meio, um olmeiro opaco, enorme, estende seus ramos e seus galhos seculares, morada, diz-se, que freqüentam comumente os Sonhos vãos, fixados sob todas as suas folhas. Além disso, mil fan­tasmas monstruosos de animais selvagens e variados aí se encontram: os Centauros, que têm seus estábulos nas portas, e as Cilas biformes, e Briareu hecatonquiro, e o monstro de Lema, assobiando horrivel­mente, e a Quimera armada de chamas, e as Górgonas, e as Harpias, e a forma da Sombra de tríplice corpo.

Tremendo com súbito espanto, Enéias desembainha sua es­pada e apresenta a ponta acerada aos monstros que avançam; e se a sua douta companheira não o advertisse de que se tratava de tênues almas sem corpo, que volitavam sob um envoltório sem consistência, ter-se-ia precipitado sobre elas e em vão feriria as sombras com o ferro.

Daqui começa o caminho que conduz às ondas do Aqueronte do Tártaro: é um golfo que borbulha, vasto abismo de lodo que re­ferve e que vomita todo seu limo no Cocito. Um barqueiro horrendo guarda estas águas, e os rios, Caronte, de terrível sujidade, cuja barba abundante, branca e mal tratada, lhe cai do queixo; seus olhos cheios de chamas são fixos; pende-lhe das espáduas o sórdido manto amar­rado com um nó. Por meio de uma vara impele a embarcação, diri­ge-a com a vela e transporta os corpos na barca cor de ferrugem; já é idoso, mas sua velhice é sólida e vigorosa como a de um deus. Toda a multidão ali espalhada corria para a margem, mães e homens e corpos de magnânimos heróis, privados da vida, meninos e virgens e mancebos colocados nas fogueiras ante os olhos dos pais, tão nume­rosos como as folhas que giram e caem nos bosques ao primeiro frio do outono; tão numerosos como os pássaros que se agrupam, vindos do alto-mar para o continente, quando a fria estação os faz fugir atra­vés do oceano e os expulsa para as terras soalheiras. Agrupados, pe­diam que fossem os primeiros a passar, e estendiam as mãos na ânsia de atingir a outra margem. Mas o triste barqueiro acolhe ora estes, ora aqueles, e afasta para longe das margens aqueles que recusou.

Enéias, que este tumulto espanta e comove, interpela a Sibila: “Ó virgem, explica-me o que quer esta multidão junto do rio. Que pedem estas almas? Por que discriminação algumas são afastadas da margem ao passo que outras varrem com os remos essas ondas lívi­das?” A velha sacerdotisa lhe responde abreviadamente: “Filho de Anquises, prole certíssima dos deuses, vês os marnéis profundos do Cocito e os paludes do Estige, cujo poder os deuses temem perjurar. Toda essa multidão que vês, são pobres que ficaram sem sepultura; aquele barqueiro é Caronte; aqueles que a onda conduz foram os sepultados. Não lhe é permitido transportar os mortos para as mar­gens horríveis por cima das roucas ondas, antes que seus ossos te­nham encontrado a paz do túmulo. Durante cem anos as almas erram e volitam ao longo dessas margens. Somente então, tendo sido admi­tidas, vêem por sua vez os marnéis tão desejados”. O filho de Anqui­ses se deteve na sua marcha, pensativo, deplorando no seu