pode à vontade, do fundo do seu antro, ladrar eternamente e aterroriza as Sombras exangues; a casta Prosérpina pode habitar a morada do seu tio. O troiano Enéias, insigne pela piedade e pelas façanhas, desce para ver seu pai entre as sombras profundas do Erebo. Se o exemplo de tal piedade não te comove, reconhece, ao menos, este ramo”. E ela lhe mostra o ramo que estava escondido sob suas vestes. O coração de Caronte, túmido de cólera, então se acalma. Ela nada mais diz; ele, admirando o venerável dom do ramo fatal, que não via há muito tempo, volta para eles a popa sombria e se aproxima da praia. A seguir, afasta as outras almas, que estavam sentadas ao longo dos bancos, esvazia o convés e recebe no seu bojo o enorme Enéias. A frágil barca gemeu sob o peso, e, pelas fendas, recebeu muita água da lagoa estígia. Enfim expõe, são e salvo, além do rio, a sacerdotisa e o guerreiro, sobre o limo informe e entre o verde morraçal.
Lá estão os remos que o enorme Cérbero abala com o ladrar da sua tríplice goela; o monstro está deitado no antro, em frente da margem. A sacerdotisa, vendo já seu pescoço se eriçar de serpentes, lança-lhe um bolo soporífero composto de mel e de grãos preparados; o animal, com fome devoradora, abre suas três goelas e engole o que lhe lançam, estende-se no solo e com seus costados imensos enche todo o antro. Enéias apressa-se a transpor a entrada, enquanto o guardião está sepulto no sono, e se afasta rapidamente da margem de onda irremeável.
Repentinamente ouviram-se vozes, e um enorme vagido: almas infantis que choravam, as quais, no limiar da existência, sombrio dia arrancou sem que tivessem conhecido a doçura da vida, roubadas ao seio materno para serem mergulhadas na morte cruel. Perto delas, os inocentes, que foram condenados à morte por erro. Esses lugares não são determinados sem tribunal tirado à sorte, nem sem juizes: Minos, como juiz, agita a urna; é ele que convoca a Assembléia dos Silenciosos e que inquire da sua vida e dos seus crimes. Depois, ao lado, estão, acabrunhados de tristeza, aqueles que sem ter feito nenhum mal se suicidaram com sua própria mão, e que, odiando a luz, rejeitaram a vida. Como eles quereriam agora, sob o éter elevado, sofrer a pobreza e os duros trabalhos! O destino a isto se opõe, e o pântano odioso de onda triste os prende e o Estige dividido em nove braços os aprisiona.
Não longe dali se estendem por todos os lados os campos das Lágrimas: assim são chamados. Lá, aqueles que um duro amor devorou numa cruel consumpção, encontram, afastados, veredas que os escondem e florestas de mirtos que os abriga; seus tormentos não os abandonam nem mesmo na morte. Vê, nesses lugares, Fedra e Prócris, e a triste Erifila mostrando as feridas que um cruel filho lhe fez, e Evadne e Pasífae; Laodamia as acompanha, e Ceneu, donzel outrora, agora mulher, é revestido pelo destino com seu primitivo sexo.
Entre estas, a fenícia Dido, sangrando ainda da ferida, errava pela grande floresta; logo que o herói troiano chegou perto dela e a reconheceu, obscura, entre as sombras, como, no começo do mês se vê ou se julga ver a lua entre as nuvens, deixou as lágrimas correrem e lhe diz com doce amor: “Infortunada Dido! era pois verdade que não vivias mais e que, com o ferro na mão, seguiste o partido extremo! Da tua morte, ai de mim! fui eu a causa. Juro pelas constelações, pelos deuses do alto, e por tudo aquilo que há de sagrado nas profundezas da terra, foi, malgrado meu, ó rainha, que abandonei tuas plagas. Não fiz senão obedecer aos deuses, cujas ordens imperiosas me forçam agora a ir por entre estas sombras, por entre estes lugares cobertos de espantosos espinheiros e esta noite profunda. Não poderia crer que minha partida te causaria tão grande dor... Detém-te! Não fujas aos meus olhares! de quem foges? E a última vez que o destino me permite te falar”.