quarta-feira, 2 de maio de 2012

4. Eneida de Virgílio



onde seu primeiro esposo, Siqueu, corresponde a seus cuidados e partilha seu amor. Enéias, todavia, abalado por essa iníqua desgraça, segue-a ao longe, chorando, e, enquanto ela se afasta, ele dela se compadece.

Dali continua o caminho que lhe foi determinado. Já atingiam os campos mais recuados que, separados, freqüentam os varões ilus­tres na guerra. Lá lhe saiu ao encontro Tideu, aqui Partenopeu, célebre pelas suas armas, e a imagem do pálido Adrasto. Lá estão os dardânidas tombados na guerra e tão chorados pelo mundo de cima. Em os vendo desfilar a todos, em longa fila, Enéias geme; reconhece Glauco, Medote, Tersíloco, os três filhos de Antenor, Polibetes, con­sagrado a Ceres, e Ideu, tendo, ainda, as suas rédeas, ainda, suas armas. Essas almas o cercam, à direita e à esquerda, em grande número; não lhes é bastante tê-lo visto uma vez; apraz-lhes até demo­rar-se, seguir seus passos, informar-se da causa da sua visita. Mas os chefes dos dânaos e as falanges de Agamenão, apenas perceberam o herói e as suas armas brilhantes, tremeram presa de enorme pavor: uns voltam as costas, como outrora, quando fugiam para seus navios; outros emitem débil grito; o clamor começado expira na boca em vão escancarada.

Lá também ele viu o filho de Príamo, Deífobo, com o corpo todo retalhado, o rosto cruelmente golpeado e ambas as mãos e ore­lhas arrancadas, as têmporas feridas e o nariz mutilado com horrível ferida. Enéias a custo o reconhece, e ele, trêmulo, esconde suas cruéis feridas; mas aquele o chama com palavras familiares: “Deífobo, po­deroso pelas armas, nascido do generoso sangue de Teucro, quem pois ousou infligir-te tão cruel suplício? Quem assim te pôde tratar? Ouvi dizer, na última noite de Tróia, que, cansado de uma vasta carnificina, caíras sobre um montão informe de cadáveres. Então eu mesmo levantei um túmulo vazio sobre a margem do Reteu, e três vezes, em altos brados, invoquei teus Manes. Teu nome e tuas armas consagram aquele lugar; mas a ti, meu amigo, não pude encontrar nem te depositar, ao partir, na terra da pátria”. O filho de Príamo lhe responde: “Nada esqueceste, meu amigo; cumpriste todas as obri­gações para com Deífobo e para com a sombra do seu cadáver. Mas meu destino e o crime da lacônia me mergulharam neste abismo de males: eis a lembrança que ela me deixou. Em que enganosas alegrias passamos a noite suprema, tu o sabes, e é muito necessário que nos lembremos! Quando o fatal cavalo galgou a alta Pérgamo e para ela conduziu a infantaria armada que seus flancos guardavam, ela, simu­lando um coro, conduzia à volta do cavalo as mulheres frígias que celebravam as orgias; no meio delas, segurava um grande facho e cha­mava os dânaos do cume da cidadela. Estava, então, acabrunhado de pesares e oprimido pelo sono; estendido sobre meu infortunado leito, dormi, invadido por doce e profundo repouso, muito semelhante à tranqüila morte. Durante esse tempo minha excelente esposa retira todas as armas do palácio, depois de ter levado da cabeceira do meu leito minha fiel espada. Chama Menelau para dentro do palácio e lhe abre as portas, esperando sem dúvida que essa bela ação seduziria o homem que a amava, e que assim poderia apagar a lembrança do antigo adultério. Que direi? Eles precipitam-se para o meu aposento, e um companheiro a eles se junta, o instigador de crimes, o neto de Éolo. Ó deuses, renovai esses horrores contra os gregos, se é com piedosa boca que reclamo vingança! Mas tu, dize-me, por tua vez, que acontecimentos te trouxeram vivo a este lugar? Porventura vens trazido pelos cursos errantes do mar ou por conselho dos deuses? Ou que outra desgraça te persegue para que afrontes estas tristes moradas sem sol, estes lugares sombrios?”

Durante essa troca de palavras, a Aurora com a sua quadriga cor-de-rosa atravessara, no seu curso etéreo, a metade do céu; e cer­tamente passariam todo o tempo concedido a prolongar tal conversa, se a Sibila, sua companheira, não advertisse o herói e não lhe dissesse brevemente: “A noite está caindo, Enéias, e nós passamos as horas a chorar. Este é o lugar onde o caminho se bifurca para ambas as partes; o caminho à direita é o que vai dar nas muralhas do grande Dite: é o caminho dos Elísios, é o nosso; mas o caminho à esquerda