quarta-feira, 2 de maio de 2012

2. Eneida de Virgílio



coração a sorte iníqua daquelas sombras. Lá ele vê, afligidos e privados das honras da morte, Leucáspide e o chefe da armada lícia, Orontes, que, partidos de Tróia com ele e sacudidos pelos mares tempestuosos, foram assaltados pelo Austro e engolidos na água com navios e homens.

Eis que se aproximava o piloto Palinuro, que outrora, na travessia do mar da Líbia, caíra da popa quando observava as cons­telações, e havia desaparecido no seio das ondas. Apenas Enéias reconheceu na sombra espessa o seu aflito amigo, dirigiu-lhe por pri­meiro a palavra: “Qual dentre os deuses, Palinuro, te arrebatou de nós e te mergulhou no seio da líquida planície? Vamos, dize. Pois Apolo, que anteriormente por mim nunca foi considerado mentiroso, enganou o meu espírito respondendo-me e prognosticando que nada havia a temer do mar e que chegarias aos confins da Ausônia. E assim que mantém a sua palavra?” Palinuro responde-lhe: “Não, o tripé de Febo não te enganou, filho de Anquises, meu chefe, e um deus não me mergulhou na líquida planície. Pois o leme cuja guarda me confiaste e ao qual estava agarrado com muita força, a fim de dirigir a tua rota, rompeu-se por acaso sob um golpe violento; preci­pitado, levei-o comigo. Juro pelos mares tempestuosos que não tive medo por mim, mas sim por teu navio, despojado de aparelhos e privado de piloto, não fosse ele capaz de resistir às tão grandes ondas que se erguiam. Durante três noites de tempestade, o Noto desen­freado por entre a imensidade da líquida planície me carregou sobre as águas; a custo, no quarto dia nascente, erguido no ar, na crista dum vagalhão, vi a Itália diante de mim. Nadava, aproximando-me pouco a pouco da terra; e já estaria em segurança, se gente bárbara, em me vendo com minhas vestes encharcadas, pesado de água, ten­tando agarrar com minhas mãos crispadas as saliências ásperas dum promontório, não tivesse caído sobre mim na ilusória esperança de despojos. Agora, presa da onda, os ventos me arremessam para a praia. Isto te peço, pela agradável luz do céu e pelos ares, por teu pai e pela esperança de Iulo que cresce, livra-me destes males, ó herói invencível: ou dá meu corpo à sepultura, pois tu podes, e procura o porto de Vélia, ou, se há outro meio, se a deusa tua mãe te indicar um (pois não é, creio, sem a vontade dos deuses que te preparas para atravessar tão grande rio e o mamei do Estige), estende tua mão a um infeliz e leva-me contigo através destas ondas, para que ao menos na morte descanse numa plácida morada”.

Tais eram as palavras que havia pronunciado, quando a sacer­dotisa começou: “Donde te vem, ó Palinuro, tão feroz desejo? Tu, que não foste inumado, tu verás as águas do Estige e o rio severo das Eumênides, e, sem para tal haver recebido ordens, abordarás esta margem! Cessa de esperar que consigas, com tuas súplicas, dobrar os juízos dos deuses. Mas ouve e retém estas palavras, consolação para a tua dura desgraça: movidos por prodígios celestes que brilharão ao longe e ao largo pelas cidades, povos vizinhos aplacarão teus ossos, erguer-te-ão um túmulo e lhe levarão honras solenes; o lugar terá eternamente o nome de Palinuro”. Estas palavras baniram os cuida­dos de Palinuro e expulsaram por algum tempo a dor do seu triste coração: ele se alegra porque uma terra terá o seu nome.

Prosseguem, pois, o caminho começado e se aproximam do rio. Logo que, da onda estígia, o barqueiro os viu caminhando pela silenciosa floresta, e dirigindo os passos para a margem, por primeiro lhes dirige estas palavras, e livremente os repreende: “Quem quer que sejas, ó tu que te diriges armado para o nosso rio, dize já a que vens, e detém teus passos. Este é o lugar das Sombras, do Sono e da Noite soporífera; não é permitido transportar na barca estígia corpos vivos. Na verdade, não estou satisfeito de ter acolhido no lago o neto de Alceu que ia aos Infernos, nem Teseu e Piríto, posto que fossem descendentes dos deuses e de forças invencíveis. Aquele pôs em ca­deias, com a sua mão, o guarda do Tártaro e o arrancou, tremendo, do trono do próprio rei; os dois outros experimentaram raptar a soberana do leito de Dite”.

A sacerdotisa anfrísia lhe respondeu brevemente: “Nós não temos tais desígnios pérfidos; deixa de estar em cuidado; estas armas não trazem violência: o ingente porteiro

Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/eneida.pdf