Entre a loucura e sua história – Descartes e Montaigne na História da Loucura
Introdução
Nosso trabalho tem, como primeiro objetivo, estruturar dois textos de dois autores diferentes (Michel de Montaigne e René Descartes), e esclarecer as idéias ali contidas.
Um segundo objetivo será, identificar as relações entre loucura e razão, verdade e falsidade e possibilidades e limitações do conhecimento humano, nas obras desses dois autores.
E por último, o terceiro objetivo será relacionar os dois autores, encontrando, se possível, pontos de contato e diferenças, através de uma ótica foucaultiana dentro da história da loucura.
Montaigne e a “loucura da razão”
Montaigne começa seu ensaio, intitulado “Da loucura de opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de acordo com a razão”, relacionando a simplicidade e a ignorância à nossa facilidade em acreditar e em nos deixar persuadir externamente, pois “acreditar é por assim dizer o resultado de uma espécie de impressão sobre a nossa alma, a qual recebe tanto melhor quanto mais tenra e de menor resistência”.[1] Ora, quanto mais vazia é a alma e quanto menos intelecto possuem os indivíduos, diz Montaigne, mais fácil é se deixar levar através da opinião de outrem. Contudo, seria presunção de nossa parte condenar as opiniões inverossímeis, os fenômenos que nossa razão não consegue explicar, etc…, pois isso caracteriza um “defeito comum aos que estimam ser mais dotados de razão que o homem normal”.[2]
A razão, por vezes, nos condiciona a rejeitar de maneira absoluta aquilo que para ela é inverossímil e digna de dúvida, e seria um passo ilegítimo, diz Montaigne, atuar desse modo. “O maior sintoma de loucura no mundo é reduzir essa vontade e essa força à medida de nossa capacidade e de nossa inteligência”.[3]
É apenas através do hábito, que consideramos a veracidade ou a falsidade de alguma coisa. Se nos deparássemos sempre com fenômenos “sobrenaturais”, por exemplo, com fatos que para nós parecem inverossímeis, não os julgaríamos tal como julgamos, e eles perderiam seu signo de “maravilhas”. Montaigne nos exemplifica isso com uma passagem de Lucrécio que diz: “familiarizados com as coisas que cotidianamente vemos , não as admiramos mais e não procuramos entender as causas disso”.[4]
Seguindo o texto de Montaigne, parece-nos que através da nossa crença em alguém digno de confiança, fatos inverossímeis possam ser verdadeiros. Contudo, “se seus testemunhos não bastam para nos convencer, sejamos ao menos prudentes em nosso julgamento, pois considerá-las impossíveis é vangloriar-se de saber até onde vão a possibilidade e a impossibilidade, o que, sem dúvida, é presunção exagerada”.[5] Portanto, acreditar que unicamente nossa razão e nosso intelecto possam nos levar ao verdadeiro e o falso, é acreditar que o crivo da razão é irrefutável e absoluto, o que para Montaigne, é uma loucura. A razão, por si só, não nos conduz simplesmente ao conhecido, mas também nega o desconhecido, o transformando em dúvida e também em falsidade.
Mais uma vez, parece-nos, que para Montaigne, a confiança e a crença em pessoas que possuem autoridade e respeito, não por serem somente virtuosas e piedosas mas também inteligentes e capacitadas, devem ser levadas em conta, pois, “ainda que não trouxessem nenhum argumento razoável, eles me persuadiriam com a sua autoridade”.[6]
Montaigne, ainda nos lembra, que nosso julgamento já caiu inúmeras vezes em contradição, e o que antes era tido como absolutamente verdadeiro (como artigos de fé, por exemplo), hoje não passam de fábulas, ou seja, o julgamento da razão pode ( e efetivamente é) ser tão falho quanto qualquer outro.
Portanto, fiar-se unicamente na razão, segundo Montaigne, é limitar nossas possibilidades de conhecer, determinando o falso e o verdadeiro, o possível e o impossível de maneira arbitrária e caindo desse modo no erro, ou mais, na ignorância daquilo que nos ultrapassa e não conseguimos capturar e nem compreender.
Descartes e a “insensatez irracional”
Descartes inicia sua primeira meditação, na obra “Meditações”, afirmando que lhe era necessário se livrar de todas as opiniões que dava crédito e começar a reconstruir desde os fundamentos “se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências”[7], ou seja, no conhecimento humano. Diferente de uma dúvida vulgar, essa dúvida de Descartes consiste em uma decisão, da qual todos os homens dotados de razão podem, e deve ter.
Para tal “reconstrução”, Descartes se baseará unicamente naquilo que lhe chegará através da razão, “uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas”.[8]
Porém, comparando o conhecimento à um edifício, Descartes não examinará cada dúvida em particular, pois o trabalho seria extremamente dispendioso, e se limitará a examinar os fundamentos, os alicerces desse “edifício científico”, tendo em vista que se os fundamentos não se sustentarem, todo o conhecimento desabará, como se o material utilizado para sustentar a construção fosse de péssima qualidade.
No caminho da dúvida, Descartes, no interior de seu método, desabilitará a confiança nos sentidos como forma de se adquirir um conhecimento verdadeiro e sólido: “Tudo o que recebi, até presentemente, como mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos : ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudencia nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou alguma vez”.[9]
Ora, o argumento do erro dos sentidos, e posteriormente da ilusão dos sonhos, fazem parte do caminho da dúvida, que no final, desembocará nas certezas (em última instância, na certeza da existência do “eu”). Portanto, esse caminho, utilizando o argumento do erro (dos sentidos) e o da ilusão (dos sonhos), nos levará, segundo Descartes, à certeza do cogito e a recuperar a verdade objetiva das coisas, postas em dúvida pela razão.
Contudo, em Descartes, há um desequilíbrio fundamental entre o erro e a ilusão de um lado, e a loucura de outro. A loucura é considerada de um modo totalmente diferente, ela atinge de imediato a verdade objetiva, não das coisas mesmas, mas do próprio eu pensante. Os sentidos podem nos enganar, porém, encontramos muitas coisas das quais não podemos duvidar, embora as conheçamos por intermédio deles, um exemplo é a existência de noso próprio corpo[10].
Os sonhos também podem nos enganar, entretanto, “é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são apresentadas durante o sono são como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes”[11]. Portanto, sentidos e ilusões não atingem de fato a verdade objetiva, essencial das coisas.
A verdade mais clara e distinta, para Descartes, a primeira que fundamenta todas as outras, é a verdade do cogito, do eu pensante, o “penso, logo existo”. Essa confiança no pensamento, na razão, é indubitável. A dúvida reafirma a existência do eu pensante. Duvidar da verdade do cogito e não confiar inteiramente na razão (claro, utilizando o reto caminho e o método cartesiano) seria loucura descabida. O eu penso possui estatuto ontológico, vem seguido da afirmação da existência da subjetividade, sem a qual não posso conhecer nada, nem a mim mesmo.
Portanto, a linha entre a verdade e a falsidade das coisas, situa-se no escopo da razão e do método, sem o qual a razão não possui direção correta, e a possibilidade (ou impossibilidade) do nosso conhecimento não é limitada pelo pensamento, e sim pelos sentidos e pela falta de direção do espírito. Se pensamos, não podemos ser loucos, mas, se pelo contrário, não pensamos, nem sequer existimos.
Razão cartesiana e desrazão montaigniana em Foucault
No século XVI, a loucura possuía um estatuto diferente, em relação ao século XVII. Um exemplo, é a filosofia de Montaigne, onde o ser louco e o não ser louco não era tido como uma certeza. Não havia a certeza sólida da loucura e da desrazão dos homens, todos poderiam ser e não se ao mesmo tempo, loucos e sensatos. Não existe cisão definitiva. “Entre todas as outras formas de ilusão, a loucura traça um dos caminhos da dúvida dos mais freqüentados pelo século XVI. Nunca se tem certeza de não estar sonhando, nunca existe uma certeza de não ser louco”.[12]
Em Descartes, já no século XVII, essa cisão acontece. “A loucura implica a si própria”, e se exclui da razão. Loucura e razão se negam, pois, se sou louco, não penso e nem existo, e se penso, existo e não sou louco. A loucura não diz respeito à razão, (não mais) e se exclui do caminho da dúvida, que leva ao conhecimento. Mais uma vez, se duvido, não sou louco.
Se com Montaigne, fiar-se unicamente na razão como forma de descobrir a verdade era insensatez, com Descartes ocorre o oposto. É necessário guiar nossos conhecimentos unicamente através do crivo da razão, do pensamento, que determina quem eu sou e, em última instância, se sou realmente.
Com Descartes, então, há uma reviravolta, há uma fronteira explícita onde os racionais e os desarrazoados não possuem contatos, são antagônicos e não fazem parte nem de um e nem de outro simultaneamente, estão fadados a distanciarem-se para nunca mais se encontrar. A condição de possibilidade de um discurso sobre a loucura, portanto, está dada, para na modernidade (metado do séc. XVIII até hoje, para Foucault), e também para a concepção de loucura como doença mental.
[1] MONTAIGNE, M. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 93.
[2] Id. Ibidem.
[3] Idem. p. 94.
[4] Id. Ibidem.
[5] Id. Ibidem
[6] Montaigne, citando Cícero. p. 95
[7] Descartes, R. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 92.
[8] Id. Ibidem.
[9] Id. Ibidem.
[10] id. Ibidem. Ver p. 94, o argumento dos sentidos.
[11] id. Ibidem. Ver. p. 94, o argumento dos sonhos.
[12] Foucault, M. História da Loucura. Tradução de José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 47.
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