terça-feira, 14 de agosto de 2012

A IMPORTÂNCIA DO LATIM NA ATUALIDADE


Publicado na Revista de ciências humanas e sociais, São Paulo, Unisa, v. 1, n. 1, p. 7-12, 1999.

A IMPORTÂNCIA DO LATIM NA ATUALIDADE

Mário Eduardo VIARO (USP)

RESUMO: Este artigo pretende ser apenas um trabalho de divulgação acerca da importância que a língua latina ainda exerce sobre a língua portuguesa. Será dada uma ênfase especial ao ensino do latim, que serve como um ótimo instrumento para entender as irregularidades e as exceções da gramática portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE: língua latina, regras gramaticais, composição de palavras.

ABSTRACT: This paper intends to be only a popularization work about the important influence of the Latin upon the Portuguese language. A special emphasis will be laid on the Latin teaching, which is useful as an excellent way to understand the irregularities and the exceptions of the Portuguese grammar.

KEY-WORDS: Latin language, grammatical rules, word composition.

O latim, como tantas outras coisas de nossa sociedade, é amiúde objeto de polêmica: se, por um lado, grassa o saudosismo daqueles que lastimam a sua exclusão do primeiro e segundo graus, por outro, abundam depoimentos de pessoas “traumatizadas” com a dificuldade que tiveram em aprendê-lo pelo método tradicional. Essas opiniões causam certa apreensão nos alunos de Letras, ao virem que Língua Latina é disciplina obrigatória em sua grade horária. Alguns têm a expectativa de encontrarem uma panacéia para todos os problemas da língua portuguesa, outros esperam algo terrivelmente difícil, quase intransponível. Mas que é o latim? Desde o primeiro texto em latim, a Fíbula de Preneste, do século VII a.C. o latim desenvolveu-se como qualquer língua, deixando seus traços em autores antigos, os quais conhecemos apenas por fragmentos de suas obras: Lívio Andronico, Névio e Ênio. Mais tarde, aparecerão os textos de Catão e as comédias de Plauto e Terêncio, escritas num latim bastante diferente daquele do séc. I a.C., quando começa a chamada fase clássica da literatura latina: César, Cícero, Ovídio, Horácio, uma dor é pungente. O verbo careo significa “não ter”, donde o particípio presente carens, carentis “aquele que não tem”, isto é, o carente. Do supino do verbo repo “rastejar” temos reptum, por isso dizemos que a serpente, por rastejar, é um réptil; aliás, serpente é o particípio presente serpens, serpentis do verbo serpo, que é um sinônimo de repo. Os verbos originais escondem um sentido que se evidencia nas formas nominais: de clepo “roubar” reconhecemos o particípio cleptum, na palavra cleptomaníaco; salio não parece significar “saltar”, até que vejamos o supino saltum; nem sepelio parece significar “enterrar” até que conheçamos o particípio presente sepultus, que lembra sepultar; nem taceo lembra “calarse” até que encontremos o particípio tacitus, donde provém a palavra portuguesa tácito, isto é, “sem palavras”. O verbo rideo “rir” tem o supino risum, donde o português riso, mas o radical RID é visível em ridículo, aquilo do qual se ri. Do verbo cado “cair” nasce a expressão estrela cadente, ou seja, estrela que cai, como de decado “cair do alto” temos decadente “que cai de uma posição social alta”. O verbo ago “fazer”, tem particípio presente agens, agentis “aquele que faz”, por isso na gramática temos o “agente da passiva”. O mesmo verbo ago tem particípio passado actus, donde vem a palavra ato, isto é, o que foi feito. Do neutro plural do mesmo particípio passado temos ata “as coisas que foram feitas” e do gerundivo temos agenda, isto é, “as coisas que devem ser feitas”. Também do gerundivo temos propaganda “as coisas que devem ser propagadas”, oferenda “o que deve ser oferecido”, merenda “o que deve ser dado a quem merece”.

Concluindo, o latim possibilita-nos aprender melhor outras línguas. Assim, o verbo absum “estar ausente” tem o particípio presente absens, absentis “o que está ausente”: em inglês, temos absent “ausente”. O verbo caleo significa “aquecer” e seu particípio presente é calens, calentis “o que está aquecido”, donde espanhol caliente “quente”. O verbo exeo “sair” tem particípio passado exitus, de onde veio o inglês exit “saída”. Também transfero “levar para o outro lado” gerou o verbo transferir em português, enquanto seu particípio passado irregular translatus criou o verbo em inglês to translate “traduzir”, isto é, “transferir de uma língua para outra”. O verbo deleo “destruir” parece-nos mais familiar quando vemos seu particípio passado: deletus, donde vem o inglês delete e daí o nosso deletar... Não é incrível que o português, sendo uma língua vinda do latim, tenha de emprestar palavras do inglês, que é uma língua germânica, para se relatinizar? Presenciamos para com a língua que é a base da língua portuguesa, justamente no país que tem a maior população de fala românica do mundo, que é o Brasil? Só mesmo o imediatismo, tão frequente na visão de mundo brasileira, pode explicar que o ensino do latim continue visto como desnecessário para o ensino do português, tão ausente e distante ele parece estar das necessidades mais prementes da Sociedade. Os métodos antigos em muito pecaram, dando ao ensino do latim o caráter penoso das infinitas tabelas a serem decoradas pelo aluno, que, por sua vez, não via sentido naquilo. Muitas vezes até textos inteiros tinham de ser decorados. Não querendo tirar o mérito dessa metodologia, que, por seguro, ajudava em muito a desenvolver a memória dos alunos, acredito que atualmente a postura é outra: é preciso revitalizar o valor que o latim tem como um ótimo meio para aguçar a percepção etimológica das raízes do português (e de outras línguas, como visto acima), o exercício da análise sintática, o raciocínio lógico, a ampliação de vocabulário e a curiosidade para entender outros momentos históricos e o desenvolvimento das sociedades e do pensamento até os dias de hoje. As consequências, num segundo momento, aparecerão na compreensão mais clara da ortografia portuguesa, na solução lógica das flexões irregulares e das exceções, no questionamento da nomenclatura tradicional e no vasto repertório histórico-filosófico que o aluno adquirirá, estando, assim, pronto para estabelecer suas próprias analogias e defender seus pontos de vista com mais clareza.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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Acessado de http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/MViaro018.pdf