Um vanguardista da música popular brasileira
Um artista maior que seu tempo e espaço"Todo o tempo em que eu viver, só me fascina você: Mangueira". A origem pobre e a poca escolaridade nunca foram empecilhos para que Cartola fosse dono de versos tão poéticos e refinados, frutos de uma personalidade marcada pela delicadeza e generosidade. ... Como disse Nelson Sargento certa vez, "Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve".
Hoje 11 de outubro de 2008, Angenor de Oliveira, que já foi pedreiro, tipógrafo, vendedor, lavador de carros e muitos outros, completaria cem anos como o maior compositor da Mangueira, figurando-se entre os maiores do Brasil em todos os tempos.
Angenor de Oliveira, mais conhecido como Cartola nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 11 de outubro de 1908. Não usava uma cartola. Mas foi como Cartola que se eternizou em verde e rosa Angenor de Oliveira, que faria 100 anos neste dia 11 de outubro. "Quando eu fui tirar a papelada para meu casamento é que eu percebi que meteram um 'n' entre o 'a' e o 'g'", contou em sua última entrevista gravada (concedida à rádio Eldorado e transformada no LP "Documento Inédito", 1982). "Para não mexer naquela papelada toda eu deixei ficar Angenor mesmo". Assim, o Angenor que não usava cartola, era Agenor, mas a incompetência de um escrevente de cartório lhe transformou em Angenor. E a cartola? Na verdade, o que lhe rendeu o apelido foi um chapéu-coco que o sambista usava quando trabalhava de pedreiro, para evitar chegar em casa com a carapinha salpicada de cimento. Durante seus 72 anos, o herói proletário de violão em riste foi tipógrafo, vendedor, lavador de carros, porteiro, contínuo... E a lista segue.
É que demorou 65 anos para que alguém se arriscasse a concedê-lo um disco de músicas próprias. O publicitário, pesquisador e entusiasta da música brasileira Marcus Pereira (morto em 1982) foi o responsável pela empreitada que resultou em "Cartola" (Discos Marcus Pereira, 1974). Antes disso, Cartola vendeu uma musiquinha aqui, outra ali, esqueceu várias – "Hoje é fácil; naquela época, não tinha gravador pra lembrar", costumava dizer – e chegou a participar dos long plays "Fala Mangueira", de 1968; e "Raizes da Mangueira", de 1973. A verdade é que Agenor ou Angenor, cartola ou chapéu-coco, tanto faz. O importante é que o carioca pobre do Catete, com instrução básica, é pai, padrinho, tio, irmão e padrasto de um dos maiores patrimônios do Brasil: o samba. Negro magro de hábitos simples, tal qual o samba, Cartola nasceu em meio a lágrimas e discriminação. Conforme conta o livro "Todo Tempo Que Eu Viver" de Roberto Moura, a mãe de Cartola, Dona Ada, teve uma eclampsia durante o parto. Uma ambulância foi chamada às pressas, mas não apareceu. Mandaram um portador descer até o asfalto para buscar um médico. O rapaz voltou para dizer que o médico só subiria sob garantia de que o pessoal poderia pagar a visita. Quando chegou, a paciente já havia morrido. Sem trabalho a fazer, restou-lhe tentar cobrar. Desceu o morro correndo, sob a ameaça de tomar um pau inesquecível. Na infância, Cartola chegou a morar em Laranjeiras, na Zona Sul, mas não se entendeu muito bem por lá. Gostava mesmo era de acompanhar os desfiles do Dia dos Reis e do (proto) bloco carnavalesco do rancho dos Arrepiados. Foi a Mangueira, para onde se mudou aos oito anos de idade, que lhe forjou a personalidade. Logo de cara, se juntou com uma meia dúzia a quem seu pai, Sebastião de Oliveira, espiava desconfiadíssimo. Seu Sebastião conhecia a malandragem, conhecia o samba – inclusive ensinou o filho a tocar cavaquinho e violão –, mas sabia da fama (e da fauna) que passeava pelas rodas. Por isso, quando Cartola e seus amigos criaram uma pequena escola de samba, seu Sebastião expulsou o moleque de casa. A escola se chamava Estação Primeira de Mangueira.
Como surgiu o nome? "Muito simples", Cartola contou ao programa Ensaio, em 1974. "Tinha uma estação com o nome de Mangueira, com uma árvore com o nome mangueira também. Aí, nasceu a Mangueira". Humildemente, o recém-chegado pediu aos colegas que verde e rosa – cores de seus adorados Arrepiados – fossem adotados para o estandarte da escola. Veio a calhar. Carlos Cachaça contou que já tinha havido um rancho em Mangueira chamado "Os Caçadores da Floresta", que usava as mesmas cores. Ficou verde porque lhe queriam rosa.
Essas foram as cores da casa onde morou desde que se casou com Eusébia Silva do Nascimento, a Dona Zica, em 1964. Os dois viveram juntos – primeiro em Mangueira e depois em Jacarepaguá – até que o sambista morreu, vítima de um câncer que só ele próprio sabia que tinha. Discreto e fechado como sempre, dizia para todo mundo que sofria de úlcera. Foi-se em 30 de novembro de 1981, ao som de seu clássico "As Rosas Não Falam". Sobre seu caixão, o estandarte de outra paixão verde e rosa: o Fluminense.
Encontro com Cartola
No final da década de 70, a então repórter do Jornal da Tarde Maria Amélia Rocha Lopes passou uma semana na Mangueira, entrevistando os maiores nomes do samba carioca. Tomou cerveja no bar Buraco Quente onde nasceu, entre outros, o samba "O Sol Nascerá" (Cartola/Elton Medeiros). Visitou a famosa casa verde e rosa, palco de noitadas homéricas. E comeu uma feijoada preparada por Dona Zica, em Jacarepaguá, para onde o casal havia se mudado - a pedido dela, para desgosto dele. "Ela dizia que era sempre uma romaria na Mangueira, que Cartola não tinha sossego", ri Maria Amélia.
Não à toa, ela logo reparou que "Cartola estava lá só de corpo presente. Todas as histórias que ele gostava de lembrar estavam ligadas ao morro da Mangueira". A preferida era a escolha das cores do estandarte da escola. Ele gostava tanto de falar nisso que tinha várias versões. Para Maria Amélia, disse que escolheu o verde e o rosa porque "não há no mundo coisa mais bonita do que uma flor, com as pétalas cor de rosas e o cabinho verde". Logo que chegou ao sobrado do casal, Dona Zica e Cartola vieram recebê-la no portão, com um pedido simpático: "Não repare na bagunça". Bagunça que não tinha. Aliás, era tudo muito organizadinho. O violão, por exemplo, ficava "sentado" em uma cadeira num cantinho da sala. "Era um lugar nobre. Quando tirava dali para sentar, ele colocava em cima da cama, todo arrumadinho. Ele era todo caprichoso com o violão".
E Dona Zica era caprichosa com Cartola. Maria Amélia lembra que ela ficava guiando o marido pela casa: "Ela mandava o tempo todo, mas era uma coisa bonitinha. 'Senta aqui', 'levanta daí', 'vem comer', sabe? Era o tempo todo cuidando dele". Cartola, turrão, fingia não gostar. Olhava de canto como quem diz: "ela está me enchendo o saco!". "Mas ele gostava! Era aquela relação de amor antigo, tão bonita, tão delicada".
É que demorou 65 anos para que alguém se arriscasse a concedê-lo um disco de músicas próprias. O publicitário, pesquisador e entusiasta da música brasileira Marcus Pereira (morto em 1982) foi o responsável pela empreitada que resultou em "Cartola" (Discos Marcus Pereira, 1974). Antes disso, Cartola vendeu uma musiquinha aqui, outra ali, esqueceu várias – "Hoje é fácil; naquela época, não tinha gravador pra lembrar", costumava dizer – e chegou a participar dos long plays "Fala Mangueira", de 1968; e "Raizes da Mangueira", de 1973. A verdade é que Agenor ou Angenor, cartola ou chapéu-coco, tanto faz. O importante é que o carioca pobre do Catete, com instrução básica, é pai, padrinho, tio, irmão e padrasto de um dos maiores patrimônios do Brasil: o samba. Negro magro de hábitos simples, tal qual o samba, Cartola nasceu em meio a lágrimas e discriminação. Conforme conta o livro "Todo Tempo Que Eu Viver" de Roberto Moura, a mãe de Cartola, Dona Ada, teve uma eclampsia durante o parto. Uma ambulância foi chamada às pressas, mas não apareceu. Mandaram um portador descer até o asfalto para buscar um médico. O rapaz voltou para dizer que o médico só subiria sob garantia de que o pessoal poderia pagar a visita. Quando chegou, a paciente já havia morrido. Sem trabalho a fazer, restou-lhe tentar cobrar. Desceu o morro correndo, sob a ameaça de tomar um pau inesquecível. Na infância, Cartola chegou a morar em Laranjeiras, na Zona Sul, mas não se entendeu muito bem por lá. Gostava mesmo era de acompanhar os desfiles do Dia dos Reis e do (proto) bloco carnavalesco do rancho dos Arrepiados. Foi a Mangueira, para onde se mudou aos oito anos de idade, que lhe forjou a personalidade. Logo de cara, se juntou com uma meia dúzia a quem seu pai, Sebastião de Oliveira, espiava desconfiadíssimo. Seu Sebastião conhecia a malandragem, conhecia o samba – inclusive ensinou o filho a tocar cavaquinho e violão –, mas sabia da fama (e da fauna) que passeava pelas rodas. Por isso, quando Cartola e seus amigos criaram uma pequena escola de samba, seu Sebastião expulsou o moleque de casa. A escola se chamava Estação Primeira de Mangueira.
Como surgiu o nome? "Muito simples", Cartola contou ao programa Ensaio, em 1974. "Tinha uma estação com o nome de Mangueira, com uma árvore com o nome mangueira também. Aí, nasceu a Mangueira". Humildemente, o recém-chegado pediu aos colegas que verde e rosa – cores de seus adorados Arrepiados – fossem adotados para o estandarte da escola. Veio a calhar. Carlos Cachaça contou que já tinha havido um rancho em Mangueira chamado "Os Caçadores da Floresta", que usava as mesmas cores. Ficou verde porque lhe queriam rosa.
Essas foram as cores da casa onde morou desde que se casou com Eusébia Silva do Nascimento, a Dona Zica, em 1964. Os dois viveram juntos – primeiro em Mangueira e depois em Jacarepaguá – até que o sambista morreu, vítima de um câncer que só ele próprio sabia que tinha. Discreto e fechado como sempre, dizia para todo mundo que sofria de úlcera. Foi-se em 30 de novembro de 1981, ao som de seu clássico "As Rosas Não Falam". Sobre seu caixão, o estandarte de outra paixão verde e rosa: o Fluminense.
Encontro com Cartola
No final da década de 70, a então repórter do Jornal da Tarde Maria Amélia Rocha Lopes passou uma semana na Mangueira, entrevistando os maiores nomes do samba carioca. Tomou cerveja no bar Buraco Quente onde nasceu, entre outros, o samba "O Sol Nascerá" (Cartola/Elton Medeiros). Visitou a famosa casa verde e rosa, palco de noitadas homéricas. E comeu uma feijoada preparada por Dona Zica, em Jacarepaguá, para onde o casal havia se mudado - a pedido dela, para desgosto dele. "Ela dizia que era sempre uma romaria na Mangueira, que Cartola não tinha sossego", ri Maria Amélia.
Não à toa, ela logo reparou que "Cartola estava lá só de corpo presente. Todas as histórias que ele gostava de lembrar estavam ligadas ao morro da Mangueira". A preferida era a escolha das cores do estandarte da escola. Ele gostava tanto de falar nisso que tinha várias versões. Para Maria Amélia, disse que escolheu o verde e o rosa porque "não há no mundo coisa mais bonita do que uma flor, com as pétalas cor de rosas e o cabinho verde". Logo que chegou ao sobrado do casal, Dona Zica e Cartola vieram recebê-la no portão, com um pedido simpático: "Não repare na bagunça". Bagunça que não tinha. Aliás, era tudo muito organizadinho. O violão, por exemplo, ficava "sentado" em uma cadeira num cantinho da sala. "Era um lugar nobre. Quando tirava dali para sentar, ele colocava em cima da cama, todo arrumadinho. Ele era todo caprichoso com o violão".
E Dona Zica era caprichosa com Cartola. Maria Amélia lembra que ela ficava guiando o marido pela casa: "Ela mandava o tempo todo, mas era uma coisa bonitinha. 'Senta aqui', 'levanta daí', 'vem comer', sabe? Era o tempo todo cuidando dele". Cartola, turrão, fingia não gostar. Olhava de canto como quem diz: "ela está me enchendo o saco!". "Mas ele gostava! Era aquela relação de amor antigo, tão bonita, tão delicada".